mar_maior_09

be rgb
9 min readAug 31, 2020

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(garrafa intermediária na praia do Gravatá)

M. S.

junto da garrafa de J. E. que já contei, compro a tua | a primeira que bato olho no mercado, vinho Ventus, feito pela bodega del fin del mundo | golfinho do mundo

começo a tomar no 20 de agosto, chega vento sul polar | a garrafa mais trabalhosa de abrir até agora, rolha de silicone | percebo que não consigo fechar e começo a imaginar como fazer, compartilho a dúvida contigo pra ver se imaginamos uma solução | derramo na segunda vez de encher a taça e seca na pia na forma de lua gibosa | assisto aos últimos 30 minutos do documentário "A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson" | sigo tomando agora a revisar a tese, cheguei enfim às páginas sobre Borderlands/La Frontera da Gloria Anzaldúa | remexo nos arquivos sobre ela e encontro uma foto em que ela parece uma arcana da Força, mão na boca de feline, camiseta de estampa de esqueleto | escuto a playlist "nem cá, nem lá" | por causa do vinho, um som específico de uma música do Chancha Via Circuito sinto como uma pontada de estrela no começo da garganta | termino de beber a garrafa, mas não a revisão

no dia seguinte tu me responde sobre o que fazer no lugar da rolha, conversamos e talvez seja uma adaptação do molotov | lavo o interior da garrafa vertendo a água de 3 taças | jogo a rolha de silicone pra reciclagem

no 26 de agosto, decido que a andança será domingo, previsão de sol | coloco a garrafa dentro da pia da cozinha pra amolecer os rótulos com a umidade | no 28 de agosto à noite, pego pra tirar | primeiro uso faca de serra, mas precisa ser lâmina rente, pego uma pra raspar fora o grude dos rótulos | resolvo gravar pra compartilhar, alguma/s parte/s do processo entreabro pra público | O. vê o story e me diz "Querosene tira. Eu uso as garrafas pra plantas" | respondo "sim! é uma ótima opção, é que evito manipular, pero dale, gostei de ouvir" | ele diz "Ahhh, sim. É meio tipo 'não entrar em contato com a pele' e eu toco sem luvas rsrs" | confiro a previsão do tempo, rajadas de vento | decido colocar os brincos de aço

no dia 30 de agosto, acordo às 4h | lá fora, nebulosidade intensa | bebo água, acendo vela e faço orações a orixás | esquento o resto de arroz, feijão e kibe de lentilha, preparo dois ovos mexidos, coloco farofa | exagero, acaba que como de pouco em pouco fazendo outras coisas | protetor solar, top, colete, camisa, moletom amarrado na cintura, calça com bolsos, máscara de caveira | lavo a louça, esquento sopa pra levar na garrafa intermediária | desisti de levar a garrafa final comigo, pesa muito na mochila junto da outra que é pra mim, sempre busco água pra minha cabeça | pego toalha amarela, carteira, carregador portátil, álcool gel, foto de andrógine hermétique, fecho a mochila ca garrafa de sopa e uma de água pequena | faço as bandagens nos meus dedos mais frágeis, coloco meias, botina e luvas, pego bastão e chapéu, saio às 6h |estrela d'alva é a primeira vista do céu | ando pela Madre Benvenuta saindo da Trindade a passar pelo Santa Mônica até Itacorubi | colho amoras ao longo do caminho | escuto um ponto na cabeça, "cachoeira da mata virgem / onde mora meu pai Xangô / (repete) / pedra rolou, Nanã Buruquê / pedra rolou, saravá pai Xangô", canto | quase no mirante, reparo que no chão há algo que podia ser uma carta de baralho, viro, é pedaço de caixa de trident X fresh intense | começo a rir e assim sigo até o mirante, 7h16, é a primeira vez que consigo enxergar logo cedo, sem névoa

sento pra beber água cos cuidado todo, vai meia garrafa | me alongo | chegam dois ciclistas | um diz "meu coração tá muito acelerado" o outro responde "tô quase vomitando (…) fazia tempo que a gente não subia" | descida | tiro foto da primavera que te mostro, já sem suas flores como da última vez, a paineira ao lado dela cada vez mais carregada de frutos | perto de um portão, para um motoqueiro e desce um skatista, nos damos bom dia | em algum momento, ele passa por mim, descendo rápido| fazem fotos dele | encosto numa mureta pra observar de novo e filmar | continuo descida e chego ao centrinho da Lagoa | paro da Kefarma pra me comprar uma máscara reserva, já que desde a última vez tive que dar ponto | sento na marina da Lagoa, 8h e pouco | tomo minha sopa toda e reparo nos senhores tarrafeando | não há nenhum barco atracado temporariamente, só os veleiros fixos à esquerda | levanto e resolvo dar uma olhada, ver se tem algum diferente | Sunshine é o único que não me lembrava de ver ali | na volta pelo deque, um homem jovem me diz alto e sorrindo "vais ser o próximo contratado!", respondo "quem dera, por enquanto só observo", ele diz "tens que falar com o comandante!" | à medida que caminho, ele nota que tenho corpo reconhecido como de mulher e fecha a cara, dizendo em tom fechado não sei se de constrangimento ou de repulsa, "bom dia, moça" | continuo andando e retribuo "bom dia", parto pra Avenida das Rendeiras | sobre a ponte, fico um tempo observando um senhor tarrafear | andando pelas Rendeiras, as velas pra Exu/Pombagira que vi da última vez seguem sem terem sido acendidas numa concavidade de uma árvore perto da entrada pras dunas | tempo calmo, Lagoa parece um grande espelho d'água | quase ao fim, noto ume monstrinhe de pelúcia fixado no tronco de uma árvore | vou até o mercado Merx pela logística do mijo, tiro a camisa e fico só de colete, compro um Matte Leão | volto e pego o atalho entre a mata por trás do Bar do Boni | encontro uma vela derretida, parecia de Xangô pela coloração e por estar junto às pedras | continuo até chegar ao acesso pra trilha do Gravatá | no topo, há um descampado que sempre encontro com algum desenho, desta vez encontro uma lua gibosa riscada na terra, não sei se crescente ou minguante | caminho até a rampa de parapente e fico ali um tempo sentade numa pedra olhando o horizonte da praia Mole e Galheta | um boy de tanga se junta a outro numa outra pedra, com uma cachorrinha chamada Maia | continuando pela trilha, há algumas pessoas | em um momento, algo que parece "pai-mãe-filho", este deve ter 12 anos | receoso, vai com dificuldade, o "pai" o segura pela mão pra descer pelas pedras | a "mãe" nota meu bastão e diz que na próxima podiam trazer um cajado pro "filho" sentir mais firmeza | comento que me ajuda muito, é meu apoio | continuando a descer, no momento de escolha entre descer à praia ou seguir à ponta em forma de vale, faço o inverso do que costumo, sigo pra ponta | o vento é brutal, as ondas estouram com força contra as pedras, me empurra pra trás | dou a volta pelo pico e resolvo subir até o mais alto | é muito difícil ficar lá em cima, resolvo voltar | sigo até o focinho do Dragão e encontro um canto confortável onde me deitar no contorno das pedras, prendo as tralhas pro vento sudeste não levar, as ondas borrifam na minha cara às vezes | fecho os olhos por um momento | sinto a cabeça queimar co sol das 11h, lembro-me de como meu pai ensinou a fazer bandana com qualquer tecido retangular, pego a toalha e amarro assim | lembro-me que é época de migração de baleias, resolvo ficar de olhos abertos pra ver, ainda que poucas chances | passada a tensão do movimento e rajadas e frio, abro as pernas, deixo estar | sinto a textura das pedras onde deito, tem jeito de ser granito | na encosta ao lado vejo trechos de diabásio | às 12h resolvo seguir meu caminho | acabo subindo pela lateral direita, o erro | as rajadas de vento são tão fortes que quase me derrubam, de um lado o abismo do mar, do outro lado, um vão alto entre as laterais do focinho | fico com muito medo, não consigo andar, porque mal me seguro no chão com as duas pernas, se levantar pra andar é pior | espero que as rajadas mais fortes passem e tento ir aos poucos | escalo as pedras e subo pro meio e desço até a praia, assustade | nas pedras da praia, solto as tralhas presas entre si pra não voarem e fico de calça e top pra entrar no mar buscar a água, já mais calme, mas ainda tremendo | as rajadas agora são bem mais suaves, mas fazem a areia chicotear o corpo | penso que as bandagens são à prova d'água e bem firmes, resolvo não as tirar | entro na água, vou com a garrafa de Matte pra buscar a minha |uma das bandagens se solta, me arrependo, volto pra margem e retiro todas pra jogar no lixo depois | volto ao mar ca garrafa intermediária pra buscar água pra tua | entro um pouco e as ondas chegam fortes, recuo pra não molhar minha calça | avanço um pouco, me curvo pra encher a garrafa, uma onda chega e me molha as calças | volto tode molhade pra praia, xingando e dando risada, as rajadas de areia me cobrem tode | guardo as garrafas, me visto, encaixo as tralhas em mim, retomo caminho de volta | há mais pessoas descendo, muitas com cachorres junto | uma mulher mais velha acompanhando um homem de idade parecida diz "gostei da tua máscara" e agradeço | poucos metros adiante, uma menina com um adulto diz pra ele "que legal essa máscara" | mais acima, uma mulher mais jovem acompanhando um homem de idade parecida me diz sorrindo "é assustador tu com essa máscara e esse cajado" e respondo "é pra dar medo em quem não está de máscara" | mais adiante, uma jovem e um jovem me veem e comentam "é bom usar cajado, dá mais firmeza" | fim da trilha, no atalho à Lagoa um homem me cumprimenta com cara de susto, retribuo o bom dia | no Merx, compro algo que nunca tomei antes, Taffman, mas na hora de ver a composição, penso que não quero tomar de novo | não sei como, perco minhas luvas | sento meio chateade com isso e resolvo parar pra descansar ao lado do mercado | mexo no celular um pouco | levanto e volto a andar pelas Rendeiras, na margem de grama e areia, animade | dois homens aparecem cavalgando na beira da água | sento na beirada dum puxado da calçada na margem alta da Lagoa, em que foi plantado um butiá | brinco de mexer na água com o bastão, na mesma hora o ramo de butiá me pega no pescoço por causa do vento | fico uma meia hora ali, sinto vontade de cantar ponto pra Oyá que não me derrubou por pouco, mas depois de 3 linhas percebo que estou é cantando ponto pra Iemanjá | dou risada de mim mesme e levanto| faço o caminho de sempre, encostando um pouco na marina pra descansar, depois subindo ao morro | vento frio, uso a toalha de cachecol | sem as flores, percebo que, embaixo da primavera, há costelas-de-adão, Monstera deliciosa | descendo o morro, num poste há um lambe de uma pessoa mascarada, rasgado pela metade | pixo na mureta do posto de gasolina "seja gentil", pixo na mureta da beira-de estrada no Itacorubi "a vida é a arte dos encontros" | no rio Itacorubi, o tronco antes inteiro onde vi ume jacaré agora está partido ao meio | vejo dues cágades, ume em cada metade do tronco | é a primeira vez que vejo algume na ilha | paro no Angeloni me comprar um agrado: requeijão e paçoca | chego em casa às 17h40

na manhã de 31 de agosto, bebo água e como as amoras lavadas | resolvo escutar as músicas pra tua lista, chamei de "solunares", enquanto cozinho arroz e feijão pra semana | na hora de verter da garrafa intermediária à final, uso funil ao lado do tanque, ainda assim transborda quase ao fim | numa playlist minha lá no escritório, toca "Cities in Dust" | sobra água na garrafa intermediária, cheia da areia que não foi pra final | corto a gola de uma camiseta que me aperta o pescoço pra usar de tecido que absorve impacto da água | fecho com fita de vinil para trabalhos elétricos | registro abaixo o texto das 7 músicas no aleatório

centinela de palmeras
que se asoman con la luna
e se olhando com calma
o buraco está bem mais embaixo
olha o que eu fiz
vai tranquila, hoje eu guardei
e tudo mais jogo num verso
intitulado Mal Secreto
con un nuevo amanecer
la luna ya dijo adiós
y toda pena se cura
nube de Agua… Luceri…
range, ruge, morde
velho tigre de virtudes

[poema escrito em papel com carvão encontrado a caminho da praia do Campeche e amarrado à garrafa com pedaço de rede de pesca mesclando roxo, azul e preto achado na Ponta das Campanhas]

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be rgb

escrevo/traduzo/pesquiso/reviso/edito | "mar maior" é 1 ritual poético/performance devocional em que levo garrafas pras gentes c'água do mar e cada relato narra