mar_maior_07

be rgb
8 min readJul 20, 2020

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(vista pro sul da ilha no pico da Ponta do Gravatá)

P.

resolvo comprar vinho uruguaio pela garrafa no 11 de julho, dia de chuva | no Angeloni, acho o Traversa; no Big, Los Teros | não sabia o que significava, mas, na volta, vejo 3 quero-queros voando entre as pistas da Avenida Professor Henrique da Silva Fontes | começo com Traversa às 15h, mas sei que a garrafa será do Los Teros

bebo quatro taças de Los Teros numa noite de segunda | preparo molho de pimenta quase no escuro ca mão queimada de água fervente do chima que vazou | crio intervalos pra responder áudios de S. que terminou seu novo livro e J. que está parindo sua tese | enquanto termino de fazer o molho de pimenta, preparo cuscuz e lavo a louça | tomo as sementes das pimentas e cavo sulcos cas mãos na terra de um grande vazo pra plantá-las | pela manhã lavo a taça e recolho restos no ralo, sinto repulsa ca viscosidade | lembro-me de um velho texto da Mary Douglas, do livro "Pureza e Perigo", uma das leituras do primeiro ano em ciências sociais | o xerox dessa ambivalência do viscoso, desejo e repulsa, vontade e medo

termino de beber o vinho assistindo ao clipe-doc "La Patrona" dedicado a la Santa Muerte do grupo Sonido Gallo Negro | duas taças de seis, lavo a garrafa

tomo banho na manhã anterior à andança escutando "See, Know" da Julianna Barwick, a considerar o que preciso carregar na mochila desta vez | embora saiba a direção, é sempre diferente | que é mais sobre quais ferramentas levar para o (caminho) que se quer fazer | relação com as coisas como percurso, mais um movimento do que uma substância | lembro-me de como gosto de mapas, traçar as rotas feitas, marcando as datas, remexi neles esta semana | ri pensando que ma/pa contém mãe e pai | lembro que na tese usei uma frase do pai queer dos Estudos da Tradução, também boy do couro da cena de Amsterdã, que traduzi como "o mapa, como as pessoas da Semântica Geral constantemente lembram, não é o território" | o território tem camadas, é habitado, tanto mais, que o mapa não dá conta | foi só terminando o banho que percebi outra camada de ritmo na música da Julianna, antes só escutava uma, agora reconheço duas | pela noite, faço um teste com a garrafa, decidida a levá-la comigo desta vez bebendo água na ida | corto sua rolha para que ela entre de volta, mas nisso a destroço | lembro-me que ainda há a rolha da garrafa da Traversa | ela entra fácil, mas muito comprida ao tamanho da mochila | corto na divisão do nome e fica Versa, fico rindo | cozinho arroz e feijão pra manhã seguinte

acordo às 5h do 19 de julho, acendo vela de proteção aos caminhos, Ogum Xoroquê, que eu vá e volte segura | Iemanjá e Ogum sempre também | como arroz com feijão preto e farofa com molho de pimenta e ovo mexido | me lembro de um poema batidíssimo da Anne Sexton que hoje acho tenso, "Wanting to Die", em que ela diz "But suicides have a special language./ Like carpenters they want to know which tools./ They never ask why build." | lavo a louça toda, me arrumo, bebo café, me alongo, ataduras nos dedos mais frágeis, saio às 7h15 | o topo do Morro da Cruz já recebe sol, mas todo o caminho pelo Santa Mônica, Itacorubi e subida pelo Morro da Lagoa da Conceição é sombra e quase ninguém na rua | noto no começo da subida um condomínio de nome Terras de Euskera, nunca tinha reparado | no mirante, 3 ciclistas param pra ver a paisagem da Lagoa e mar, um de geração mais velha, os outros dois bem mais novos que eu | o mais velho de longe me chama "amigo, pode tirar uma foto da gente?" e dou risada irônica de me passar por rapaz com essa máscara de caveira, cabelo curto, botina e camisa xadrez, drag king vivido | bato a foto e sento-me pra tomar água da garrafa que pela primeira vez decido levar logo | um caminhoneiro em um Iveco me acena, devolvo o cumprimento | sigo pelo centrinho da Lagoa, escuto os sinos da igreja às 9h ao lado do cemitério | entro no Magia pra comprar aquele caldo de cana com limão e guardo pra mais tarde, uso o banheiro do mercado na logística do mijo | sigo e sento-me na marina da Lagoa pra beber minha sopa, tempero de sempre | no oráculo dos barcos, poucos estão atracados, a barca Símbolo da Fé segue ali, mas noto um veleiro que tem por nome um símbolo, uma estrela | caminho por toda a avenida das Rendeiras, paro e subo em um pequeno atracadouro pra olhar melhor as escunas de passeio | sigo pelo atalho do Bar do Boni e subo até a entrada do Caminho dos Pescadores | tiro a camisa, muito calor | paro na rampa pra fotografar uma panorâmica e percebo que é a melhor forma de tirar fotos nas trilhas pro mar aberto, te envio | uma mulher e um homem surgem juntes, o homem diz que o vento Norte turva a água, o vento Sul a limpa, penso que justamente havia visto na tábua das marés que o vento seria nor-nordeste hoje | sigo pela trilha ladeada de agaves e em algum momento ela e ele me passam, vou devagar porque venho desde muito antes, e o homem diz pra mulher que morou em um barco no meio da Amazônia por dois meses | quase chegando à praia, um pescador ignora seu colega e me pergunta "tudo bom?" assim que eu chego, respondo de volta "tudo e tu?" sem parar logo desço à praia do Gravatá | só há um casal de um lado, uma família do outro, deixo minhas coisas no meio | termino de beber da tua garrafa | tiro roupas e ataduras, percebo uma pata com pinça de caranguejo na areia em paralelo com minha mão ferida, guardo, sigo ao mar | entro e está muito gelado, xingo, um mergulho basta | pego a garrafa da sopa, levo pra lavar e encher de água pra mim | por fim pego a tua garrafa e encho | ao voltar, uso uma pedra pra bater contra a rolha e prendê-la bem, nisso o nome Versa aparece como Ver do lado de fora | me visto, refaço as ataduras nos pés, lavo a pinça do caranguejo | escalo pela pedra que só depois no Google Maps descubro que se chama Cabeça do Dragão, sobre a qual se encontra a Pedra da Onda, pesquisando então soube que existe a Caverna do Dragão ali | só quis lagartear nas dobras do focinho do dragão, devo ter ficado meia hora ali | minha vó envia um bom dia de figurinha, aproveito pra gravar algo pra ela com o som das ondas, ela carioca sente uma falta do mar | ela se emociona, diz que sente muitas saudades, como é terrível essa pandemia | gravo que sinto muitas saudades também e torço pra que ela veja o mar quando isso for possível | algo pousa em minha perna esquerda, só depois de alguns segundos olho e percebo que é uma joaninha, dessas vermelhas e pretas | olho pras ondas fortes da lua nova batendo contra o costão e nisso noto que uma mulher está lá no alto, num dos picos, que eu nem sabia que era possível, imediatamente me motivo a ir | levanto, recolho as tralhas | subo imenso e tenho uma vista absurda da liga ca praia da Joaquina | abaixo, pescadores naquilo que o Maps chama de Pedra da Prancha | chego num pico de uma pedra plana longa que dá pra vista do sul da ilha, saudades, espero a galera dali vazar sentada na outra ponta | chego pra perto da pedra, os urubus sobrevoando, deito e fico uma boa meia hora ali olhando o mar, ora fechando os olhos e só ouvindo o marulho | uma ave que podia ser um sabiá encosta na borda da pedra logo abaixo dos meus pés e fala um pouco | dá uma cota, resolvo seguir, 13h30 | volto firme, mas cansada, pelo mesmo caminho na direção oposta | paro no que antes era Mercado Retiro e agora virou Merx | bem criança compro um pacote de bolacha Trakinas sabor morango | pausa do mijo | caminho pelas Rendeiras | paro na marina pra começar a comer as bolachas, a barca Símbolo da Fé continua ali | decido ir conhecer a Ponta das Almas, de que me falou B. F. | 1 km entre ida e volta que no fundo já havia feito com alguém, de noite, e não sabia que era o mesmo caminho | sento na grama, na beira da Lagoa, pra terminar o pacote de bolacha e dois cachorros encostam junto, primeiro pelo cheiro, depois se sentam comigo ali mesmo sem nada de comer que eu ofereça | retomo o caminho, centrinho | vejo o cavalo castanho claro solto, atravessando a rua com sua corda e estaca amarrados, pra pastar adiante | nunca tinha visto assim, sinto que quem deve saber melhor são os frentistas do posto Ipiranga logo adiante | comento do cavalo e um deles diz que é assim mesmo, ele fica solto pastando, de vez em quando até encosta no posto, é de casa | me divirto com ideia do cavalo de casa | agradeço por saber que está tudo bem, sigo meu caminho morro acima | um beagle me late de dentro de um carro subindo | pouco antes da virada do mirante, um moço que não conheço me buzina e acena energicamente, retribuo o aceno também com ânimo | talvez me reconheçam pelo chapéu de palha e bastão vermelho, sigo rindo | descendo pela mesma rota, encontro azamizade jacaré do mangue no Rio Itacorubi | paro num mercado, como sempre, comprando o que preciso | chego em casa às 18h e tanto, a função toda

na manhã seguinte em jejum coloco tua playlist pra tocar | "o vento é quem te trouxe, é quem te leva pro teu lar" | percebo que três são instrumentais e nunca tinha lidado com isso antes, me resolvo

Passos na direção errada
Cordas e hang alinhados
Oyá, ô mulher forte
Poderosa e sagrada
E nesse caminho são
Omolu me conduz
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
Monções de cima a baixo
Tocam saxofones e palmas
Snap back, let go
React, tell everybody
A expedição Kon-Tiki
Cresce com o hang em ondas

[poema escrito em papel com carvão encontrado a caminho da praia do Campeche e amarrado à garrafa com pedaço de rede de pesca azul marinho achada na Ponta das Campanhas]

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be rgb

escrevo/traduzo/pesquiso/reviso/edito | "mar maior" é 1 ritual poético/performance devocional em que levo garrafas pras gentes c'água do mar e cada relato narra