mar_maior_06

be rgb
6 min readJul 3, 2020

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(na mesa do escritório)

T. H.

começo na toada lunar após a garrafa de M. M. | espumante vermelho doce | entrada de Câncer | saindo das águas que conduziram o relato anterior, seguindo às tuas | tu e ela que estão nesse nosso caldeirão viscoso de terras e águas sobre as quais se sopra | justo neste dia tu lança ideias gravando | logo em seguida escrevo a Y. A. que a Sophia de Mello Breyner Andresen "me ressoa o mistério do mar. o mistério não é domesticável, mas não é violento como atributo essencial. isso rompe com o binarismo ecofóbico e ecofílico que ora distancia o perigo ora toma pra si aquilo que extrapola tais gestos"

volto aqui com uma faixa azul marinho amarrada na cintura, uma calça de infância esgarçada que logo afrouxou o elástico e não para em mim | escutando "Marujo" de Mariene de Castro | “Eu sou marujo e quando volto do mar/ Volto com a alma doce pra amar" | ela que conheci cantando ponto de Nanã | eu e tu também somos dos caminhos ao mar, mar de caminhos | hoje abri teu livro e vi a folha de peixinho que tu deixasse em "Assiwajú", este poema que nos (re)uniu mais, e em "A(l)mar", me ensina que se come, e ah nossos sonhos de ondas | na página adiante os pássaros me lembram vagamente de Sankofa | nesta semana li a respeito, ao escutar sobre capoeira | jogo de dentro, jogo de fora |volto sempre ao ponto, "quem escuta a mãe d'água cantar/ vai com ela pro fundo do mar" | ela não estava na Dança dos Orixás que há pouco te enviei, esta que o Youtube me devolveu | busquei vídeo do grupo Ke Kai O Kahiki ontem, o tema Dança ficou em destaque, a Dança dos Orixás ressurgiu | assisti com S. na véspera de Ano Novo de 2015 para 2016, virada de ano em que ainda nem sabia que me mudaria para a ilha de Santa Catarina, poucas semanas depois decidi | me enrolo em memórias

dia de São João, dia de Xangô, é quando decido sair buscar tua água | procedimentos inaugurados pelo mar_maior_04 | camisa vermelha, calça preta | com todos os cuidados, mantendo a distância, me metendo por onde não tem gente, é estrada e mato e mar | esses estranhos dias de sol e calor fizeram com que turistas e locais delirassem | firmo a cabeça | tudo que aprendi nas outras voltas, incorporo, de bota nova | deu 5 anos da outra, pesada, descolando o solado | saio depois da prática da yoga, quase às 10h | os ipês-roxos florindo | "Meu pai São João Batista é Xangô/ Dono do meu destino até o fim/ Se um dia me faltar a fé em meu senhor/ Derrube esta pedreira sobre mim/ Meu pai São João Batista é Xangô" escuto no coração ao longo do caminho | aumentou muito a quantidade de cacos de vidro na beira da estrada | me alimento de líquidos nas poucas pausas, sempre as mesmas, no mirante do morro da Lagoa, onde sento ouvindo o vento botar os bambus para estalar, pego um ramo deles, e depois na marina da Lagoa, em que sento para beber suco de cana com limão do mercado Magia | oráculo dos barcos, Horus e Novo Horizonte I | no dia anterior, tinha me lembrado do rabiscado do horizonte, a palavra escrita, depois dos versos de Alfonsina Storni "Perder la mirada, distraídamente,/ Perderla, y que nunca la vuelva a encontrar;/ Y, figura erguida, entre cielo y playa,/ Sentirme el olvido perenne del mar" | tem que perder uma forma de olhar para ter espaço para encontrar outra | no caminho pelas Rendeiras, um homem de máscara em uma Saveiro para e me pergunta se eu sei onde fica o Tropicália, não sei |compro um isotônico no mercado Retiro | tomo o atalho que B. F. me ensinou na vez anterior para chegar quase à boca da trilha do Gravatá, chamada de Caminho dos Pescadores | vou para a direção oposta, não sabia ao certo, desconfiada de que era para a outra, e de fato era | começo a trilha e paro na rampa a observar o horizonte da Praia Mole, Galheta e a ilha do Xavier na direção do mar aberto | sento na pedra, bebo | caminho até a Praia do Gravatá | entro no mar quatro vezes: na primeira, deixo ervas de banho; na segunda, lavo e encho a garrafa de sopa com água do mar; na terceira, encho a garrafa da água que bebi; na quarta, entro eu | as ondas que batem nas rochas à esquerda voltam cruzando com as outras que chegam direto, vou cantando "Deu meia noite/ A lua se escondeu/ Lá na encruzilhada/ Dando a sua gargalhada/ A pombagira apareceu/ A laroyê é laroyê é laroyê/ É mojubá é mojubá é mojubá/ Ela é odara/ Quem tem fé em pombagira/ É só pedir que ela dá" | volto do mar, me seco, refaço ataduras, bebo, me visto e subo em direção ao costão | homens observam um barco pesqueiro com grande rede pela época da tainha | vou até o outro lado adiante, onde se faz um vale entre picos e é possível observar o sul da ilha | volto pelo caminho de cima, que puxei ao andar com o G. L. em fevereiro | o mato fechado que então me bloqueava o caminho e segui ainda que com medo desta vez estava desbastado | sinto o cansaço bater e paro na pedra da rampa, penso | quase ao fim da trilha mais fechada pela mata, tarde que vira ao entardecer, levo algumas picadas de mutuca, coçam muito | penso na história que se conta sobre os borrachudos de Ilhabela, que ouvia muito quando morava no interior de SP | retomo todo o caminho de volta com a pausa na marina para beber algo parecido com iogurte | a primavera quase ao fim da subida do morro da Lagoa cada vez mais florida, colho algumas de suas flores no chão | os mesmos caminhos, 19h em casa, Kairós preta, tribuzana

ciclone bomba nos aflige no 30 de junho | sem pensar na energia que preciso economizar, escuto as músicas da tua playlist nessa noite tão escura | "tudo que tenho de meu são cicatrizes" é o nome dela | registro as 7 músicas | dias depois, acendo a luz vermelha e bebo o fim da Ypióca empalhada, saco que serve para vestir as garrafas | começo a dançar "El Mercado De Los Brujos" de Sonido Gallo Negro e sinto saudades de incorporar pombagira, uma destas que nos fizeram sair do armário da vida|escuto talvez por engano na letra da música a palavra ajolote que sei axolotl sempre aqui | criaturas estranhas desviantes | nós queers cuírs kuírs | escolho teus versos

I never thought I'd grow up so fast so far
To know yourself is to let yourself be loved
Que o segredo está na cura, está na cara
Está na cura desse medo
Eu sou a chuva que moia
Que refresca bem
And if you’re lost I’m right behind
’Cause we walk the same line
Ninguém pode destruir assim um grande amor
Não dê ouvidos à maldade alheia e creia
I know it’s hard, yeah I know it’s hard,
And baby that’s something I don’t disregard
E a mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco

[poema escrito em papel com carvão encontrado a caminho da praia do Campeche e amarrado à garrafa com pedaço de rede de pesca azul marinho achada na Ponta das Campanhas, meio desfiada precisei tacar cuspe para passar com a agulha e peço desculpas, amigo, pelo excesso]

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be rgb

escrevo/traduzo/pesquiso/reviso/edito | "mar maior" é 1 ritual poético/performance devocional em que levo garrafas pras gentes c'água do mar e cada relato narra