mar_maior_05

be rgb
7 min readJun 21, 2020

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M. M.

(garrafa na manhã de sol em Câncer e com o Morro da Cruz)

começo a beber o gin da garrafa no 6 de junho de 2020 |um dia depois de abrir o oráculo do mar para ti | no dia da lua cheia eclipsada | saberes outros | depois de 2h cuidando de guardar temperos para alguns meses | gin tônica, já conhecia de 2018 feita por outres, agora pela primeira vez aprendo e preparo | antes de voltar à escrita da tese | nesta parte sobre Borderlands/La Frontera da Gloria Anzaldúa em que eu me arrasto | chamada com T. tão boa, me fez tão bem| bebi demais, não sabia o quão forte essa mistura podia ser, descuidei das proporções, vomitei a vida | desacelerei, senti a fragilidade do corpo, como a estabilidade entre fora e dentro é fina | sonhei que em uma loja de artigos para umbanda e candomblé eu perguntava ao atendente se ele tinha algum disco do J. B. de Carvalho

enquanto isso, se aproxima meu aniversário, nos falamos | E. me pergunta porque chamo a data de arrastar-se até a boca da serpente da terra, digo da Gloria Anzaldúa e da casa 8, meus surtos para dentro| nisso, G. M. me envia do nada imagens de um texto que leu, pois conversou com S. sobre o tema| deixo aqui as fotos de Da arte à morte de Michel de M'Uzan que ela me enviou | sincronicidades

jornada de pré-aniversário de 26 anos| procedimentos muito semelhantes ao do mar_maior_04, mas agora com meias adequadas, talco nos pés e fitas nos dedos, a máscara sempre | peregrinação rumo à Galheta em voto de silêncio, na parceria de caminhada com B. F. | saio às 7h30, vou mais devagar no morro da Lagoa, neblina das árvores que respiram | saravá, Ewá | ao fim da descida do morro, bebo metade de minha sopa | 9h30 nos topamos na frente do Supermercado Chico, troca de presentes — pra ela, um livro do Hermann Hesse, pra mim, um incenso—, seguimos caminhando | cada uma no seu passo | B. F. me ensina um atalho | lembrar-se de olhar para trás nas ladeiras e subidas de trilhas: ora lagoa, ora mar, entorno verde| cada vista pede uma pausa que podia ser bem mais longa, quedar-se em repouso | estradas e trilhas, chegando à Mole rumo à Galheta, lá nos sentamos na sombra de uma pedra às 11h30 | termino minha sopa, tomo um iogurte, uso todas as garrafas para buscar água do mar para esta, tua | segue a toada nutriente | entro no mar para meus 26 mergulhos, sinto o buraco puxar, nado para fora na paralela, sinto de olhar para trás e noto que B. F. veio ao mar, alerto sobre o buraco | onde há buraco, há corrente de retorno, mais fraca ou mais forte dependendo do mar no dia | pessoas morrem por se desesperar tentando sair e se afogam | se fraca, é possível nadar para fora | se a corrente for forte, o correto é deixar-se levar, porque ela traz de volta à praia | dessa experiência, passamos a conversar | vamos para a trilha da Galheta à Fortaleza da Barra | erva baleeira ladeando na pausa a ver o mar, às vezes olhar para trás ajuda a notar o que está ao lado | quase 1h depois, na Fortaleza, pego espada-de-são-jorge para o banho do dia 13 de junho, seguimos andando | paramos no mirante da Lagoa, bebemos e conversamos sobre o passado recente | cerveja Kairós | andando mais, sentar na marina da Lagoa e conversar sobre destinos, sempre por trás das máscaras | táxi-barco dá ideia | andamos mais um pouco pelo centrinho da Lagoa, cada uma depois segue seu caminho | na subida do morro da Lagoa, um motoboy para e me berra: FORÇA! VAI! BORA! e volta a subir| perto do mirante, na virada que dá para o continente, olho um dos céus de pôr-do-sol mais lindos de minha vida até esses quase 26 anos e penso que isso foi um presente também | chego em casa às 19h30, depois do mesmo trajeto que tenho aprendido a fazer, sem bolhas estouradas, embora dolorida e com elas ali | limpo tudo e descanso, com o sol nas costas | sigo bebendo, na medida certa, gin tônica, em meio aos dias com conversas nutrientes contigo e outras pessoas queridas nos intervalos entre as horas arrastadas com a tese

percebo que estava fazendo gin tônica porque era o que eu conhecia que se fazia com gin, mas não é a mistura que prefiro | a memória de vomitar piorou isso | experimento fazer com polpa de caju, meu sabor preferido de suco, e gelo, e fica ótimo | tomo a noite, depois da tarde com a tese e manhã de feira e mercado, para preparar pesto vegano de ora-pro-nóbis, farofa de farinha de mandioca torrada com páprica e açafrão, molho de pimenta dedo-de-moça, agora com canela em pó junto, e lavo tomates | quando a garrafa se esvazia, noto que o dosador pode dificultar colocar a água do mar dentro, faço uma experiência com água da torneira | é quase impossível | penso que isso diz muito do cuidar e não ser cuidada, doar e não receber, porque não se considera o direito a esse pedido, como a garrafa não supõe outro líquido dentro depois de pronta | tenho que quebrar uma parte do dosador com uma faca, mas não mais que isso, receosa de danificar o todo, para inserir uma agulha de desentupir fogão | de poucos mililitros em mililitros, mexendo a agulha, a água cai | bom que trouxe água a mais, pois vazou às vezes, e ainda reabasteço a minha garrafa da aliança, usada para ritual | água não me falta | levo mais de uma hora para encher a garrafa, que geralmente aconteceria em menos de um minuto, sentada junto à pia da cozinha, enquanto o Youtube mexe por seus algoritmos | sabendo que eu gosto de "This is How We Walk on The Moon” (mencionada em mar_maior_02) e que abri para enviar para M. S., toca "Stop, Seisku Aeg!" da Velly Joonas, cantora e poeta estoniana de aparência andrógina, de um disco dos anos 80, e segue

tive que dormir com uma camiseta molhada em volta das mãos para doer menos, a ardência da capsaicina| acordo no 21 de junho, solstício de inverno, dia de eclipse solar em Câncer não visível para nós | recebo mensagem tua e me marcou em um post na página "Meio da terra" sobre o momento, o texto diz muito do que temos conversado, ainda que eu pense diferente em alguns sentidos | copio e colo aqui, engraçado que ontem te passei uma música da banda Cut Copy | "meiodaterra Nem sempre a gente sabe ouvir a intuição. Eu sinto que a intuição é como falar sem ouvir o que está dizendo. É uma voz minha que eu mesma não escuto, porque vem de muito dentro. Intuição não é só sobre prever algo que pode acontecer, é sobre não controlar. Câncer é o signo da lua e a lua é pura intuição, um ritmo contínuo e estável de mudanças e nuances. Porém só uma face é vista.
No eclipse solar a lua cobre o sol, se coloca entre o sol e a Terra. É a intuição se sobrepondo à razão, dançando na sua frente e chamando a se perder nela. A face da lua que o sol vê é oposta à que nós vemos, e é portanto um momento em que nossa razão, sobreposta pela intuição, encontra novas respostas. Atente-se aos insights. Escute o som do cuidado.
Quando enfrentamos o medo do mergulho e percebemos o bem estar que ele pode nos trazer, entendemos que a água é um abraço, que perder o controle não significa errar. E perder o controle pode ser não fazer nada, simplesmente parar. E deixar a água penetrar os poros, perceber seu movimento lento porém jamais fraco. A delicadeza é uma grande potência.
Crianças sabem bem o que é estar presente sem precisar segurar, esforçar, calcular. Trazer a alma pra pele, encarar os sentimentos, o passado, as lembranças, e deixar. Agora é o momento de observar pra depois agir, de se envolver, fechar os olhos e deixar. Todo mundo precisa de um tempo.
@orgiaplanetaria"

reconheço que é hoje que vou ouvir tuas músicas para compor o fim deste processo, arrumando cozinha e a preparar frutas, chimarrão | recebo um e-mail de M. P. depois de seis meses sem resposta, me passando link do filme "Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas" da Chantal Akerman | sempre quis ver algum filme dela e nunca parei para fazer isso, sorri| chamei a tua lista de "depois da serra, te encontro no jardim"

Cause I found out nobody wants you
When you’re down and out
No resto do peito o que sobrou do amor
E o sol quarando a mágoa
Per aiutare i prigionieri facevano le bende con lenzuola
E i cittadini attoniti fingevano di non capire niente
Pra onde vai ou porque veio nem mesmo sei
Qual é a parte da tua estrada no meu caminho
Ê boi ê boi ê boi quem ficará quem foi
Ê bumba iê iê eu também já fui boi
Ó meu pai já te esqueceste do que fez nossa família?
Que cortou tantos pescoços pra chegar à monarquia
And I know how you’ve hurt and been dragged through the dirt
But c’mon get back up it’s the time to live

[poema escrito em papel com carvão encontrado a caminho da praia do Campeche e amarrado à garrafa com pedaço de barbante, que B. F. usou para fechar um retalho de tecido florido com o incenso artesanal de alecrim que fez]

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be rgb

escrevo/traduzo/pesquiso/reviso/edito | "mar maior" é 1 ritual poético/performance devocional em que levo garrafas pras gentes c'água do mar e cada relato narra